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Tempestade


Este texto foi publicado aqui na Caverna, originalmente, em setembro de 2011.
Pensando nos acontecimentos que me guiaram até aqui, a primeira coisa que me vem à mente é minha chegada àquele pedaço de terra perdido e distante, que serviu de abrigo para meu corpo durante algum tempo. Um lar solitário no meio de um mar gelado e cinzento. Mas no dia em que cheguei o Verão estava no auge, e o clima era acolhedor. Minha surpresa foi tão grande que quase sufoquei no instante em que abri os olhos.

Alguns dias antes eu estava perdido em sonhos impossíveis. O ar que entrava em meus pulmões trazia o cheiro infinito do mar, o perfume abençoado das águas gigantes, útero eterno que me envolvia por completo. Eu subia e descia lentamente, num ritmo hipnótico, e assim estava há tanto tempo que minha alma voava livremente, entre os diversos mundos existentes. Minha respiração acompanhava o movimento das ondas, sem que eu tivesse controle sobre isso. Meu corpo, ao perceber a ausência de minha alma, seguia a Vida segundo o balançar do oceano.

Tinha consciência de tudo isso, pois meus olhos estavam abertos, e parte de mim ainda estava naquele corpo. Movia-me apenas para manter o equilíbrio, sentado com a coluna ereta. Não consigo lembrar quanto tempo passei naquele estado, mas tal recordação seria uma futilidade, pois o tempo para mim não é nada além de uma grande inutilidade. Ignoro as horas e os dias, e anos para mim são inexistentes. Apenas posso garantir que o que narro agora aconteceu há muito tempo.

Foi algo lento, sôfrego, cadenciado em uma velocidade mínima. Milhas após milhas em direção ao horizonte, e eu fui me desligando de tudo. Fui apagando, libertando-me de mim mesmo, de meu corpo machucado e fraco, e comecei a voar, encantado pelo céu azul e infinito e pelo mundo bonito que logo eu deveria deixar para trás. Eu via tudo, toda a beleza do mundo, e também via o sofrimento daqueles que eu prejudicara. Encontrei as vidas que ceifei, e os espíritos perdidos e angustiados que eu espalhei entre os mundos. Assim, consegui perdão universal. E ao mesmo tempo que minha jornada fora do corpo quebrado me levava à paz, eu podia enxergar o mar e as ondas ao meu redor, sentir o vento e o cheiro do oceano. O dia e a noite se misturavam, sem que eu pudesse ver a diferença, e o Sol e a Lua eram praticamente o mesmo ser. Até que uma tempestade me fez voltar ao meu mundo de origem.

A chuva fina grudava o cabelo em minha face. Nuvens finas se desmanchavam naquela garoa, enquanto o Sol lutava para surgir no céu mau humorado. Eu continuava minha jornada pelo mundo de água, vagando nas ondas sem destino conhecido, viajando pelo universo inteiro com a minha alma voadora. Meu pequeno barco era como uma rolha em uma grande bacia, a mercê do destino, dos ventos, das águas, dos gigantes. A tarde acabou precocemente quando nuvens escuras venceram o Sol e cobriram o céu. A garoa ficou para trás, dando lugar a uma chuva pesada acompanhada pelo vento gelado, que aos poucos se enfureceu e atacou o mar. Este revidava, jogando suas águas o mais alto que podia, perdendo sua calma costumeira diante das nuvens ameaçadoras e arrogantes. E no meio desta batalha entre água e ar estava meu pequeno barco.

O perigo aumentou aos poucos. Eu pude ver tudo, mas escolhi não voltar, deixando meu corpo à mercê da Natureza. Trovões começaram a rufar enquanto a claridade do dia morria em tons azulados cada vez mais escuros. Relâmpagos iluminavam a cena com violência, anunciando a batalha feroz que eu presenciaria nas horas seguintes. A chuva vinha em gotas grossas, se jogando contra meu corpo como se eu fosse seu inimigo mortal. Conforme o tempo passava, as ondas se revoltavam mais, lançando a embarcação de um lado para o outro sem piedade. E eu ainda não havia voltado ao meu corpo. Não queria voltar.

Mas minha vontade não era a mesma do destino. A força da tempestade tornou-se colossal, e minha alma voou como um raio, cruzando as barreiras entre os mundos, e despertou-me do transe que mantinha meu corpo são. Desorientado, me agarrei às beiradas do barco, tentando ver alguma coisa. Na escuridão, só conseguia ver o lençol infinito e revolto do mar quando um raio cortava o céu. Por fim, percebi que tentar ver alguma coisa era inútil, e abaixei a cabeça. Fechei os olhos e deixei minha voz soar livre, tentando transformar o som dos trovões em tambores ritualísticos. Eu queria sair dali novamente.

As ondas golpeavam o barco com uma força inigualável, fazendo a madeira ranger e estalar, e parecia que a qualquer momento a embarcação se partiria ao meio. Algumas ondas eram três vezes mais altas que meu barco, que em determinado momento já estava cheio de água, mas não me preocupei em esvaziá-lo, pois já me considerava um homem morto. Já havia me livrado de minhas culpas, e abandonado minhas iras e desejos de vingança. Deixara para trás o ódio que antes consumia meu coração, e fiz minha alma voar enquanto fazia aquela viagem rumo à morte. E enquanto meu corpo permanecia inerte naquele barco à deriva, eu destruía minhas culpas, aliviava minha consciência, expiava meus crimes, encontrava justiça.

Porém, quando a tempestade me trouxe de volta, percebi que eu ainda precisava pagar, e aquele era o último castigo para expirar minhas culpas. Afinal se meu corpo perecesse enquanto minha alma vagava pelo mundo eu não sentiria dor ou medo. Seria fácil demais. E eu senti medo. Quando abri meus olhos e vi a embarcação cercada por muralhas de água, gigantes furiosos, eu temi, como qualquer ser humano. Teria chorado, mas meu corpo queria apenas se resguardar da dor de ser lançado contra o oceano raivoso. Meu peito pulava, minha respiração falhava, minhas mãos se feriram por segurar a beira do barco com força demais.

A reflexão dos dias anteriores desapareceu. Toda a calma adquirida foi lançada ao ar por um momento, enquanto todos os sentimentos ruins que eu havia domado, eram imprudentemente libertados, como bestas ferozes escapando de suas jaulas. Eles agarraram minha alma no instante em que ela retornou, e me encheram de medo e insegurança. Todos os instantes de minha vida passaram por minha mente, e a conformidade com a Morte foi deixada de lado. Senti medo da destruição, temi a dor, o sufoco, e a água que invadiria meus pulmões com violência.

Não faço ideia de quantas horas estive naquele sufoco, mas me recordo de acordar quando a proa do barco atingiu um banco de areia. As lembranças anteriores vão até um instante crucial, em que o turbilhão de memórias e pensamentos fazia minha mente girar, tirando meu fôlego, e a escuridão ao meu redor era palpável. Uma música agressiva soava nos meus ouvidos, misturada aos sons da tempestade, e o ápice do crescendo foi quando o barco inclinou, apontando para cima. Um relâmpago incendiou meus olhos, e a música estourou meus tímpanos, um coral de vozes belas e terríveis, tambores e instrumentos estranhos, que soavam como urros de feras, e neste momento eu enxerguei a maior onda do mundo, pronta para me engolir.

A música parou, e tudo foi silêncio, até o barco atingir a areia, num dia de sol. Quanto tempo estive adormecido eu não sei. Como consegui sobreviver também é um mistério. Tampouco sei que música era aquela que eu ouvi. Consigo me lembrar de cada detalhe da melodia, se me concentrar. Posso cantarolar...

Abri meus olhos com dificuldade por causa do Sol. À minha frente havia uma ilha pequena, com muitas árvores, e um enorme penhasco. Belíssima paisagem para um condenado. Se eles soubessem que ao invés de morrer no mar eu encontrara um lar perfeito, ficariam irados contra o destino. Eu poderia viver muitos anos naquele lugar. Foi o que pensei no início.

As estações eram idênticas, e o tempo parecia estar congelado. Impossível escapar dali, e impossível viver ali. Quando iniciei minha jornada pelo mar, joguei nas águas revoltas da praia todo e qualquer resquício de ilusão. Eu sabia que minha vida terminaria logo, que o fim se aproximava, e para encará-lo, eu precisaria me limpar. Fiz a alma voar, fiz a paz invadir meu peito. Não poderia imaginar que o destino me traria até aquela ilha. Para me castigar ainda mais? Para prolongar minha vida? Para me fazer sofrer?

Os dias eram idênticos, a solidão era aterradora, e a razão se tornou mais translúcida, quase desaparecendo por completo. As vozes dos albatrozes soavam como risadas malignas, zombando de meu tormento todos os dias. Eu precisava me libertar, precisava ir embora. Minha vida havia acabado junto com a música da tempestade, e não havia motivo para continuar ali. O mundo não me queria, e eu fui punido pela justiça dos homens. A humanidade também não me queria mais.

Para partir bastava um impulso, um abrir de asas, um sorriso para sentir o vento no rosto... A grama  verde, contrastando com o branco da areia, o cheiro do mar ao meu redor... Minha alma estava tão desligada do mundo que não percebi a distorção de minha pele, ou as fraturas de meus mebros, e o contato com o fim foi gentil.

Luz no fim do mundo, farol da eternidade, inimigo e protetor dos viajantes perdidos... Minha alma já é parte do mundo novamente, e uma nova canção ecoa em meus ouvidos etéreos. Ela ecoa desde o meu sorriso derradeiro que saudou a liberdade. Minhas culpas do passado jazem no fundo do mar, minha vida se foi na tempestade, e eu renasci. Mas isso foi há muito tempo atrás.

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