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Contemplações no abismo sem fim


Os dedos perdiam a força e os braços já não suportavam mais o peso do corpo. O vento impiedoso fustigava-lhe o corpo, balançando perigosamente, fazendo-o chacoalhar e se chocar contra as rochas. Desespero e dor aguçavam sua mente, e cada parte de seu ser empregava uma força descomunal na tentativa de se erguer novamente.

Já estava pendurado na beira daquele penhasco há horas, e já não tinha mais forças. De repente a mão direita escorregou, e a aresta aguda da rocha rasgou a pele de seus dedos. O vento soprou com mais intensidade, como se tivesse a intenção de dificultar ainda mais sua situação.

No rosto um esgar de medo e fúria; no peito uma sensação de desamparo, abandono e injustiça; na mente pensamentos de morte, dor e ódio. Olhou para o céu escuro e praguejou, e como resposta uma coruja surgiu num vôo baixo, piando cheia de escárnio. Ela sobrevoou o condenado, num movimento lento e circular no ar poluído, fez uma meia volta e piou novamente enquanto saía do campo de visão do rapaz ali pendurado.

Lágrimas fortes surgiram em seus olhos, e por mais que seu orgulho tentasse frear os lamentos, ele não foi capaz de segurar a onda de amargura, e chorou por alguns minutos, sentindo que sua mão esquerda também não suportaria todo aquele peso por muito tempo.

Depois de alguns minutos de choro e lamentação ele olhou para baixo, para encarar seu carrasco mais uma vez. O abismo, imortal e impiedoso, aberto sob seus pés que se chacoalhavam contra a rocha escorregadia. Era como a boca de um gigante escancarada para o céu nublado, engolindo tudo o que havia de bom no mundo, sem perdoar nada nem ninguém. Parecia não ter fim, e seu fundo ficava oculto na penumbra. Ecos profundos e distantes vibravam através das paredes ancestrais, e o fundo escuro da garganta de pedra parecia levar aos infernos mais gélidos.

Foi então que o jovem abraçou o desespero do fim, sentindo que já não importava mais. E de repente seus dedos pareciam mais fortes. Ele sentiu que poderia esticar novamente a mão direita, e com mais algum esforço certamente conseguiria se levantar. Mas uma sequência de muitas imagens borradas surgiu em sua mente, e ele se esqueceu do céu sujo acima dele e da poeira fétida que penetrava seus pulmões com violência. Seus olhos secaram, e as lágrimas em seu rosto eram símbolo de lamúrias passadas.

As imagens mostravam sua vida e o gosto amargo da mortalidade, da existência inútil, das ações supérfluas que, enquanto ser humano, ele considerava tão importantes. Ele via a incoerência das promessas de realização e conquista, e a futilidade presente nos prazeres momentâneos. A verdade que o invadiu dizia que um sorriso era algo inumano e quase indecente, o erro eterno da humanidade, que sempre acreditou que o gozo seria o mais próximo que se poderia chegar de um deus. A coruja surgiu novamente, piando, mas desta vez piava em protesto, e o rapaz riu disso, desdenhando do pássaro tão sábio e ao mesmo tempo tão tolo.

Ele já não temia a morte, nem mesmo o abismo, e percebeu que a força que voltara a seus membros era um erro, uma parcela humana de sua consciência que dizia que ele deveria tentar subir novamente. Mas ele soube que se assim fizesse, a mortalidade o trairia, e ele estaria, mais uma vez, cercado de esperanças e anseios, coisas que jamais conseguiria alcançar graças à humanidade dentro dele.

"Não nasci para ser humano", pensou ele. A brutalidade falou mais alto, e agora ele sorria com selvageria contra o céu, que neste momento se abria num azul sublime, como se o estivesse convidando a subir novamente, traiçoeiro, vil, imoral. "Como você pode? Quem você pensa que é?", murmurou ele. Com um rugido ele se soltou do rochedo, e com as pernas tomou impulso. Jogou-se no ar, rumo ao vazio. Um trovão soou no céu, pois o mundo gritava, exigindo sua vida, exigindo sua humanidade, sua alma.

A bocarra o engoliu, e de uma maneira espantosa, ela não era o portão dos infernos de gelo. Era a entrada para um universo real, sincero, um lugar onde não existia esperança, e sim, objetivos, onde ao invés de simplesmente buscar por coisas ele deveria batalhar por elas.

No grande abismo surgiu uma luz, que logo assumiu a forma de uma grande chama, violenta, animalesca. A chama transformou-se em um dragão, que veio voando das entranhas da Terra, brilhando. Gritava contra o céu claro e límpido, despejando nele seu fogo eterno.

O dragão era o rei do Abismo, e havia descoberto o significado da vida. Ele deixara de ser humano.

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15/05/2012

Apenas reflexões sobre o que as pessoas consideram humanidade.

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