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Guille e a bola


Olá. Meu nome é Guille. Guille de Rais. Como o de Gilles de Rais, aquele francês maluco, amigo de Joana D'Arc, que matava todo mundo. Meu pai me deu esse nome. Não sei porque, mas o infeliz achou que ter o mesmo nome que um assassino do século XV era algo legal. Nem francês eu sou, apesar de ter muitos antepassados franceses. Eu até entendo que ele quis me dar um nome imponente, algo que remetesse a terror, medo, força, sei lá. Às vezes acho que era só para combinar com minha cara de mau. Sim, meu pai sabia que eu teria cara de mau desde quando eu era um bebezinho. Mas não me levem a mal, eu gosto do meu nome, só quero deixar bem claro que não sou nenhum depravado, pedófilio, infanticida, assassino, pirado, essas coisas.

Meus pais sempre foram muito bons para mim. Desde o começo eles me deram uma vida boa. Eu tenho comida boa na hora certa, tenho guloseimas de vez em quando, algumas frutas (adoro maçãs!), e eles sempre me dão brinquedos novos. Eu sei que já não sou uma criança mais, mas eu não tenho muito o que fazer durante o dia. Às vezes eu cuido da vida dos vizinhos. Detesto cada um deles. Eu sei quem chega e quem sai do condomínio, sei dos horários de cada um, e sei dos problemas que eles têm em casa, pois sempre ouço suas conversas. E quando não estou cuidando da vizinhança, estou relaxando com meus brinquedos.

Inexplicavelmente, o que eu mais gosto de fazer é destrui-los. Destruo todos, desde moleque eu tenho esse costume. Nada dura muito na minha mão, só sobram pedaços. Por isso meus pais e minha madrinha estão sempre me presenteando com novos brinquedos, geralmente de plástico, por serem mais baratos. Meu pai acertou ao dar o nome do fidalgo francês assassino, pois eu sou muito nervoso. Sou capaz de passar um dia inteiro mau humorado. Puto mesmo, com todo mundo. E poder destruir esses brinquedos me acalma um pouco. Antes os brinquedos do que alguma pessoa, não é mesmo?

E por falar em pessoas, algumas me causam um ódio tremendo. Crianças, principalmente. As crianças são seres extremamente irritantes, querem chamar minha atenção, querem que eu brinque com elas. Não importa o quanto eu deixe claro meu ódio por elas, as crianças me adoram. Parece alguma maldição. Basta me verem para começarem a sorrir, e estendem suas mãos grudentas e mal cheirosas. É impressionante o fedor que uma criança pode exalar! Eu não preciso disso, já tenho meus próprios odores (confesso que tenho não sou muito fã de banho). E não preciso de crianças para me divertir, tenho meus brinquedos para isso, embora devo dizer que adoraria destruir uma criança da mesma forma que faço com meus brinquedos. Olhando por esse prisma eu até tenho algo de semelhante com o velho Gilles. Não que eu seja a favor da matança de crianças promovida por ele, mas quando estou muito irritado com elas, me torno um fervoroso admirador de seu trabalho.

Mas chega de falar desses pequenos demônios. Acho melhor falar sobre meu brinquedo favorito: bola. Bola de borracha, bola de tênis, de futebol, de plástico, não interessa. Adoro brincar com bola. Não que eu seja fã de futebol. Não gosto de nada que passe na televisão, exceto alguns filmes que meus pais adoram ver, que até são legais, mas nada que prenda minha atenção por mais de cinco minutos. Mas uma bola pode me entreter por horas. Minha favorita é uma de futebol (por coincidência), que já está toda detonada de tanto eu rolar aquilo pela casa. Minha mãe fica um pouco irritada, pois eu deixo os pedaços da bola espalhados por todo o lugar.

Eu piro mesmo quando tem balão em casa. Festa de aniversário é um tormento! Eu fico louco de vontade de arrancar aquilo tudo das paredes e estourar um por um. Minha mãe, que sabe dessa obsessão, sempre separa os balões para mim no final da festa, mas meu pai não gosta muito, reclama que faço barulho demais. Bobagem dele! Enfim...

Me irrito com meu pai, às vezes. Ele é um sujeito mau humorado, que vive ralhando comigo. "Guille! Fica quieto!", "Sai de cima de mim, Guille, não consigo nem me mexer!", "Vai pro quarto, anda!". Sujeito desagradável, credo! Mas tem vezes que ele é legal. Corre comigo quando saímos para passear, faz carinho e cafuné sempre que pode, e brinca comigo quando chega do trabalho. Nunca falha. Ele me pega, arrasta, puxa, faz barulho, deixa que eu pule nele, corre atrás de mim, me amassa nuns abraços apertados e brutos, e ele faz isso para me provocar, pois sabe o quanto detesto abraços. Eu sei que com ele eu posso brincar pra valer, eu corro, dou cabeçada, empurro, e até mordo. É diferente de brincar com a mãe.

Minha mãe é linda! Tem um par de olhos enormes que sempre me trazem calma. Só acho que ela se preocupa demais comigo. É remédio pro ouvido, é casquinha de machucado pra curar, é pomada aqui, pomada lá... Isso me irrita, mas não importa o quanto eu reclame, ela não para. Mas tirando esse problema dos cuidados irritantes, ela é incrível! Cuida de mim, de meus brinquedos, me enche de mimos e carinhos, e está sempre lá quando eu passo mal ou coisa parecida. E deixa eu dormir com ela depois que o pai vai trabalhar. Adoro dormir com ela, principalmente quando está frio.

Os dois são os melhores pais do mundo, e vivem me mimando. Às vezes fico puto com o tom que usam quando querem me agradar, me sinto uma criancinha. Mas eu sei que no fim tudo ficará bem, afinal não fazem por mal. Eles só querem me proteger, cuidar de mim. Tudo bem que às vezes eles saem, pra passear ou pra trabalhar, e não podem me levar junto. Fico tão triste... e com raiva. Tudo bem que eu fico com minha avó ou com minha madrinha, que são pessoas muito legais, mas eu gosto de ficar com meus pais, gosto de todo mundo junto e perto de mim. Quando me canso dos dois, vou dormir na casa de minha avó, mas geralmente sinto muito a falta deles.

Às vezes eles brigam, e eu detesto isso. Não gosto de gente gritando e chorando, odeio confusão. No fundo eu sei que eles vão parar com isso, e vão se acertar. Por isso eu faço o meu melhor, tento animar todo mundo. Se não der certo eu volto para meus brinquedos.

É isso. Esse sou eu. Sou Guille de Rais, como o assassino, Gilles. Sou temperamental, detesto crianças, adoro meus brinquedos, mas tenho um carinho especial por minhas bolas de borracha, ou de plástico, ou de capotão, não interessa. Amo meus pais, minha madrinha e minha avó, e adoro o jeito que eles têm de cuidar de mim.

Agora chega de conversa, pois meu humor já foi pelos ares novamente. Uma das minhas bolas favoritas, a de borracha, de cor laranja, rolou em direção ao guarda-roupas. Na porta tem um espelho enorme. Odeio a porcaria daquele espelho. Nele eu sempre vejo um cachorro irritante que me encara, com suas orelhas pontudas e seu focinho amassado. Aquelas bochechas arrogantes, se eu pudesse pegar aquele safado! Eu tento falar com ele, mas ele não responde, apenas me imita. Eu lato, eu rosno pra ele, mas ele não liga. Sou obrigado a pegar minha bolinha e sair de perto, pra poder roê-la em algum outro canto, onde tenho paz, e não tem aquele cachorro irritante me encarando na merda do espelho! Acabou com meu dia!

Minha mãe e eu.

Comentários

  1. Ah, que legal!
    Adorei a descrição e o final foi surpreendente! Tinha uma ideia completamente diferente de quem realmente era o Guille... hehe
    Forte abraço, meu caro! :D

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  2. Que bom que gostou!
    Hehehe!
    O Guille é cheio de marra!
    Obrigado pela força!

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