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Pelo ralo


Ele sempre amaldiçoava a hora de tomar banho. Não por não gostar de banho, afinal estava sempre asseado, limpo e perfumado. O que o irritava era o tempo que desperdiçava no banho, pois seu dia era muito cheio. Trabalho, academia, curso de alemão, e ao chegar em casa ele tinha inúmeros projetos aos quais desejava se dedicar.

“Merda! Ainda tenho que tomar banho!”

Corria pegar a toalha no varal, uma muda de roupas, e ia com pressa ao banheiro. Se despia em alta velocidade. Muitas vezes, enquanto desafivelava o cinto com uma mão, abria a válvula do chuveiro com a outra, para que a água fosse esquentando.

Naquela noite sua mente estava especialmente criativa, com pensamentos promissores surgindo a cada instante. “Esse ritmo ficaria legal naquela música. Vou fazer uns testes depois”, pensou ele enquanto em sua cabeça uma batida eletrônica surgia sem aviso.

Como de costume, amontoou as roupas num canto e se lançou sob a água quente. Molhou os cabelos compridos e desgrenhados, enquanto ainda tamborilava mentalmente a batida recém criada. “Eu deveria ir lá agora e fazer isso. Eu vou acabar esquecendo o ritmo”.

Shampoo. Ensaboou a cabeça, pensando em como seria melhor se estivesse lá, trabalhando em sua música, ou escrevendo algo, desenhando alguma coisa agradável... Mas ao invés de tudo isso ele estava lá, molhado, e ainda iria levar mais uns dez minutos até estar livre daquela perda de tempo que era tomar banho.

“Tempo perdido, isso que é! Tanta coisa para fazer, e eu aqui tomando banho”. E nesse momento já havia se esquecido da tal nova batida, pensando em como os índios sul-americanos haviam ferrado com sua noite por causa desse costume tolo de tomar banho todos os dias. “Tanta coisa para fazer!”

Sabonete. Um verso surgiu em sua mente, e mais alguns versos, formando um poema bastante interessante sobre o ato de escrever. Nunca escrevera nada sobre aquilo, e aquela ideia era boa. Deveria anotar aquilo. “Droga, ainda não terminei aqui!”.

A espuma se espalhava por seu corpo, e ele não esquecia detalhe algum. Em seu banho meticuloso, novamente pensou no atraso que aqueles minutos representavam para seus projetos. Novamente pensou no que poderia fazer ao invés de estar ali, e se demorou quando pensou em desenhar, e uma composição surgiu de repente. Uma moldura, toda em bico de pena, com aspecto gótico, para ilustrar aquele seu poema obscuro do qual tanto gosta. “Ênfase nas linhas verticais nos detalhes! Alguns círculos certamente. Vai ficar bom!”.

Teve vontade de sair dali correndo. Havia tantas ideias, e elas precisavam ganhar vida. Voltou a amaldiçoar aqueles minutos de banho, mas a pressa não o fez relaxar. Continuou meticuloso como sempre, mas irritado. Finalmente o pé, o último pedaço do corpo a ser ensaboado antes das partes íntimas. “Acho que nem vou esquentar a comida agora. Vou direto fazer as coisas, e depois eu como. O que eu faço primeiro?”.

Pensou em uma ordem para as tarefas criativas que precisaria cumprir. E logo se prendeu novamente na batida, cujo ritmo ele já não lembrava, “... mas acho que era mais ou menos assim...”, e depois viria aquele poema tão legal sobre escrever, mas os versos também haviam ficado para trás, “... acho que era isso...”, e depois ele iria começar seu desenho, mas os detalhes visuais que haviam nascido naquele insight de minutos atrás já haviam se tornado um borrão “... sei que é meio gótico, com círculos...”.

“Enxague, finalmente!”. Deixou a água quente escorrer pelo cabelo, pelo ombro, pelo peito, a espuma lentamente indo para o ralo. Tudo indo pelo ralo. Desligou a torneira, puxou a toalha, cheio de pressa, se secou, e mesmo estando afobado para sair logo daquele banheiro, ele teve o cuidado de enxugar bem entre os dedos dos pés. Se vestiu correndo “A barba fica para amanhã de manhã”.

Pendurou a toalha molhada na porta. Na verdade ele apenas jogou a toalha ali, de qualquer jeito, e o tecido certamente não secaria direito. Enquanto isso repassava a ordem das coisas, “Música, poema, desenho!”. Largou a roupa suja no cesto do banheiro e correu para o quarto. “Agora sim!”

Sentou-se. A tela do computador o encarava, convidativa, mas ele apenas ficou ali, parado. E quando finalmente voltou a si, apenas exclamou, indignado:

- Porra de banho! Esqueci tudo!

Comentários

  1. Muito bom!!
    Realmente, pensamos em tantas coisas e por um segundo, acabamos nos esquecendo de tudo!
    Mas mesmo assim, não troco um banho por nada! Rs...
    Adorei o texto!
    Até breve!
    =D

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  2. Pelo que vi ele tem dez minutos de grande inspiração, que são exatamente os minutos em que ele está sob o chuveiro. O que precisa ser feito é um, tipo lousa, lugar para que possa anotar suas ideias e assim ir anotando-as enquanto se banha.

    Abraço.

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