Pular para o conteúdo principal

Confissões Noturnas - Parte II

Esta é a segunda parte do conto Confissões Noturnas.

Confissões Noturnas - Parte I
Confissões Noturnas - Parte II
Confissões Noturnas - Parte III
Confissões Noturnas - Parte IV


O velho merceeiro fitou o homem por um momento, inicialmente sem acreditar.
"Se ele fosse mesmo um assassino, não sairia contando isso para qualquer um. Mas, por outro lado..."

- O que quer dizer com assassino?
- Bem... Eu matei pessoas.
- De verdade?
- Sim.
- Mas... Está confessando que é um criminoso? A mim? Ou o senhor pretende me matar, ou me toma por tolo e quer se divertir às minhas custas.

E que fique claro que nosso merceeiro só respondeu neste tom por acreditar que aquilo era apenas uma brincadeira.

- Entendo sua reação, mas não é uma brincadeira. Tampouco pretendo assassiná-lo. Apenas... Fiei-me de vós, e acredito ser capaz de desabafar perante alguém aparentemente tão bondoso.

O merceeiro ainda estava sem reação, tão inusitada era aquela conversa. Julgou que seria melhor apresentar os aposentos ao forasteiro e ir dormir. Mal pensara nisso, o frio à sua volta pareceu aumentar. Encheu novamente a caneca de vinho. Estranhamente, sentia que queria ouvir a história daquele homem.

- Pois bem, Senhor...
- Thanatos, esse é meu nome.
- Então, Sr. Thanatos. Pode me explicar melhor esta estória de assassino.

O rosto de Thanatos se contraiu num sorriso que se assemelhava a uma careta de dor. Com um pigarro, ele começou.

- Sou decente de uma linhagem muito honrosa. Meus antepassados eram guerreiros poderosos, grandes líderes. Alguns foram comerciantes famosos e muito ricos. Outros eram donos de pequenos feudos, e gozavam de grande prestígio junto ao nosso rei. E meu pai era um deles.

"Ele tinha muitos planos para mim, que cresci praticamente dentro da corte. Se tudo desse certo, eu me casaria com a filha do rei. Eu traria a realeza à minha família. Mas eu me perdi. Eu tinha a minha parte nos ganhos da família, e me ocupava da mesma função que meu pai. E todas as minhas riquezas, eu usava para a libertinagem.
Comia do melhor, promovia banquetes, convidava amigos libertinos como eu. Passava noites em tavernas, acordava deitado na beira da estrada, feliz. E tudo ficou cada vez mais pesado. Orgias, loucuras de volúpia, festejos profanos regados a vinho, música e prazeres carnais de toda a espécie. Era assim que eu gastava minhas posses."

Aquilo era bastante incomum para o merceeiro. Uma história fantástica e absurda. Difícil de acreditar, mas assaz interessante.
Seu rosto era incrédulo e duro. Não aprovaria aquele tipo de comportamento em sua família.

- E seu pai? Permitia esses excessos?
- Claro que não. Na verdade ele não conhecia este meu lado pervertido. Além de meus amigos, poucos sabiam que eu praticava tal tipo de divertimento.

"Eu me perdia cada vez mais, sempre em busca de mais prazer. Até que ela veio. A Loucura tomou conta de mim pela primeira vez. Certa tarde, bêbado, avistei pela janela da taverna em que me encontrava uma carruagem que vinha lentamente. Convenci meus amigos de que devíamos tomar o carro de assalto, pela diversão. Pregaríamos um peça no condutor e em quem estivesse dentro da carruagem, e depois partiríamos, cada um em uma direção.
Mas durante a brincadeira, o condutor ameaçou um de meus amigos com uma adaga, ao que meu amigo respondeu cravando a espada em seu peito. E dentro da carruagem, encolhida no canto, estava uma belíssima jovem. Neste momento eu não vi mais nada. Tudo o que sei a respeito do que se seguiu foi através do que me contaram, e através de pesadelos."

O semblante de Thanatos ficou mais sombrio, e seus olhos pareciam tristes, carregados de mágoa e pesar.

- Dizem que fui encontrado desfalecido, ao lado da donzela, também desfalecida. Suas vestes estavam rasgadas, e havia sangue. Ela fora desonrada, e eu fui o autor do crime.

Horrorizado, o merceeiro emitiu um som rouco de repugnância.

- E para piorar a situação, tratava-se da filha do rei, a princesa que teria sido minha esposa. Ao invés de me condenar à morte, o rei ordenou que eu fosse mantido em cativeiro, para sofrer. Eu deveria passar o resto de minha vida enclausurado, sendo vítima de maus tratos, levando surras e suportando todo o tipo de violência.

"Nada mais justo, afinal a condenação de morte não me faria sentir toda a dor que merecia. Tive pesadelos, me vi como terrível algoz, enquanto a pobre moça gritava e esperneava, e sempre soube que eram lembranças a retornar à minha memória, e não apenas delírios do sono. Soube que meus amigos, ao verem que eu havia enlouquecido, tentaram me impedir, mas a minha fúria era tão grande que eles fugiram.
E assim fui encarcerado. Minha desgraça, que eu mesmo busquei. Minha própria trilha rumo ao mundo dos quase-mortos, reinos de escuridão e dor, gritos selvagens e sentimentos inumanos."

O merceeiro não percebeu que o ar ficara mais frio, e inconscientemente ele se aconchegou no casaco. Sentia-se aterrorizado pelo que o homem contava, mas queria ouvir mais.

- Foram anos terríveis.
- Anos?
- Sim. Muitos. Contava 21 quando aconteceu, e saí do cárcere aos 29. Minha pena teria sido bem mais suave se eu apenas tivesse que permanecer lá, parado. Mas não. Eu era espancado e açoitado diariamente. O carcereiro era um ser sem um pingo de piedade, mas reconheço que eu merecia aquilo. No começo aceitei tudo sem reagir. Me sentia tão culpado pelo que havia feito à donzela, que a dor passava por meu corpo como o ar entra e sai do peito.

"Mas depois de certo tempo eu comecei a definhar. Tudo era tão escuro e úmido, e o único lampejo de Sol que eu vislumbrava era um lampejo que invadia a masmorra por uma fenda em que mau cabia meu dedo indicador. O único ser vivo com quem eu tinha contato
Minha mente parecia ter afundado na escuridão, e ela sufocava naquele ar viciado. Eu não gemia ao receber os golpes, apenas me curvava a cada pancada, sangrava, às vezes sucumbia. Meu corpo já havia se adaptado, e agora meu espírito estava entorpecido. O tempo todo era um sonho vazio no escuro, mas às vezes eu era atormentado pelos gritos da moça na carruagem. Ouvia minha voz sussurrando coisas que eu não compreendia, cantando músicas que eu não conhecia.
Acredito que permaneci imerso neste mundo de insanidade por alguns anos.."

O vinho acabou.

- Com licença, Sr. Thanatos.

O Merceeiro voltou com nova garrafa, e antes que pudesse se sentar, Thanatos continuou, olhando para o fogo.

- Ela veio até mim. Se despiu totalmente, tão atraente, diante de meus olhos...
- Ela quem?
- A Insanidade, a Loucura.

Ele sorria.

- Eu assassinei o carcereiro com meus próprios dentes.

Continua.

Comentários

  1. Olá amigo Marlon
    Esse foi forte e o final me surpreendeu, esse moço estava perdido não tinha mais salvação, sua alma era companheiro das trevas. Quando nos perdemos ficamos como lixo qualquer lugar vira nossa morada, ele era um ser do mal, é uma desculpa sem resposta. Parabéns gostei. Um abraço.
    Com carinho
    Kaoma

    ResponderExcluir
  2. Que bom que gostou, Kaoma!
    Mas ainda não chegou ao fim.

    O relato de Thanatos termina na terceira parte, que pretendo publicar amanhã.

    Fique pela Caverna e verá!
    Até!

    ResponderExcluir

Postar um comentário